Você e todos os usuários têm tudo a ver com isso. Pense o seguinte: se a Justiça conseguiu bloquear o aplicativo móvel mais usado no país, por que ela não poderia fazer o mesmo com qualquer outra ferramenta menos popular?
A questão é que impedir o acesso a qualquer conteúdo disponível na rede vai contra algumas das principais medidas estipuladas pelo Marco Civil da Internet, o conjunto de direitos dos usuários na web e das regras para a atuação de empresas e do governo no meio digital. Uma delas, descrita nos artigos 18 e 19 do texto do Marco Civil, diz que o provedor não pode se responsabilizar por atos de terceiros — neste caso, as suspeitas de envolvimento do PCC em efetuar crimes via WhatsApp. A única exceção a este caso só responsabiliza o provedor por derrubar um conteúdo que infrinja a lei. Está lá, na lei:
Art. 18. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Outro ponto que fere o Marco Civil é também o mais polêmico: o da neutralidade de rede. Segundo o texto, é proibido definir que tipo de site ou aplicativo você acessa, ou ainda controlar a velocidade de conexão em serviços específicos. Por exemplo, se a sua internet é de 20 Mbps, os mesmos 20 Mbps devem ser destinados tanto para um conteúdo mais leve, como um arquivo de texto ou imagem, quanto para algo mais pesado, como um download ou vídeo em alta resolução. Além disso, as empresas não podem barrar apps, nem pré-determinar aquilo que você pode ou não visitar. Ou seja, você tem o direito de acessar toda a internet, sem distinção de conteúdo ou velocidade.
Também está na lei:
Art. 9. O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. (…) Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo.
Em resposta ao bloqueio do WhatsApp, a Proteste — Associação brasileira de Defesa do Consumidor — defende que as garantias estabelecidas pelo Marco Civil da Internet, como a neutralidade de rede e a inimputabilidade, não devem ser violadas, nem que os provedores de conexão respondam pelos atos ilícitos praticados pelos usuários (novamente, neste caso, os suspeitos de envolvimento com o PCC). Para a entidade, a decisão é desproporcional e os efeitos da medida trazem prejuízos inestimáveis ao impedir milhões de brasileiros de usar o aplicativo.
Rafael Zanatta, pesquisador em telecomunicações do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), também condenou a suspensão do WhatsApp, destacando o ocorrido como “uma violação ao Marco Civil”.
“A legislação estabelece, entre os princípios de uso da internet, a liberdade de modelos de negócios, a inovação e a liberdade de o consumidor usar os dados como preferir. O artigo 9º do Marco Civil diz que os pacotes de dados usados pela internet devem ser tratados de forma isonômica. Mesmo que as operadoras ofereçam o acesso à internet, por meio de sua infraestrutura, elas não podem discriminar o que o usuário desejar usar. O Marco Civil entende que o consumidor está protegido e tem o direito de decidir o que é melhor para ele. É a garantia da neutralidade da rede”, disse.
Dirceu Santa Rosa, o advogado que em 2014 defendeu o app Secret logo quando a Justiça do Espírito Santo determinou sua retirada das lojas do Google da Apple, acredita que o caso recente do WhatsApp sinaliza um futuro que pode colocar em risco a liberdade dos usuários sobre o que eles querem acessar na internet. “Ainda que o Facebook não tenha cumprido a ordem judicial, o precedente aberto pela juíza da São Bernardo do Campo é muito perigoso. Vão surgir outras medidas judiciais, com certeza”, alegou.